MAQUIAVEL, CÉSAR BÓRGIA E ¨O PRÍNCIPE¨
Ao que tudo indica, a tendência em exaltar e admirar o mal parece ser um enigma e uma peculiaridade do ser humano. Nisso Maquiavel tinha razão e também os seus admiradores e seguidores. Não por acaso escreveu O Príncipe baseado na vida de César Bórgia. Quem foi César Bórgia? Filho do Papa Alexandre VI, considerado um dos Papas mais corruptos e inescrupulosos da história da igreja católica, beneficiou-se do poder, prestígio e inescrupulosidade do pai para angariar poder e satisfazer todos os seus apetites mais primitivos. Violento, cruel, sanguinário, assassino, inescrupuloso, traidor, perverso e pervertido, inclusive sexualmente, pois consta que abusou diversas vezes de sua irmã Lucrécia, cai em desgraça com a morte de seu pai em 1503 e com a eleição do novo Papa Júlio II, de corrente contrária aos Bórgia, sendo posteriormente detido. Depois, torna-se um fugitivo e morre em combate, numa emboscada, em 1507 . Temido e ao mesmo tempo odiado foi o exemplo do que não se deve ser. Considerado por Maquiavel um gênio político e militar todo seu poder e suas ambições ruiram ante a morte de seu pai. Mas, mesmo com o desastre de sua vida pessoal, após a morte do pai, que lhe servia de escudo para seus requintes de crueldade, sua vida inspira Maquiavel e este o toma como modelo de gênio político para escrever ¨O Príncipe¨. Para muitos um livro atemporal, cujas regras permanecem válidas em qualquer tipo de sociedade e em qualquer tempo. Me poupo ao trabalho de descrever os elogios a ele destinados, bem como os permenores de sua vida e fracasso. Mesmo assim, Maquiavel o idolatra e não abandona a idéia de lhe destinar uma menção honrosa. E quanto a Maquiavel? Em 1512 cai em desgraça, é destituído do cargo, perseguido e torturado sob a acusação de ser contrário aos Médici. Em 1513, escreve¨ O Príncipe¨ inspirado nas qualidades de César Bórgia, que já estava morto, com dedicatória a Lourenço II de Médici, com o propósito de reconquistar o poder e o prestígio que havia perdido. Fracassou e não conseguiu alcançar o seu intuito. Sua teoria mais uma vez não funcionou. Talvez tivesse lhe faltado fortuna. É possível que, com as suas teorias, passasse a ser uma ameaça. Pois, será que alguém em sã consciência teria a coragem de deixá-lo por em prática, por si próprio, as suas idéias? Por que trazê-lo novamente ao poder se suas idéias já tinham sido expostas? Não se sabe se os Médici seguiram os seus conselhos ou se exerceram o longínquo poder contrapondo suas idéias. Mais uma vez, com a queda dos Médici em 1527 suas esperanças de retornar ao poder foram frustradas. Seria uma petulância querer desqualificar e desmerecer o gênio de Maquiavel e a importância de seu tratado político. Mas, estes desenlaces me intrigam e, por isso, não poderia deixar de mencionar a discrepância e a falta de sintonia entre os fundamentos de sua teoria e os resultados práticos obtidos, principalmente por quem lhe serviu de paradigma. Não somos ingênuos a ponto de considerar a ¨nobre¨ atividade política um exemplo de ética, longe disto. Contextualizar significa conhecer as circunstâncias políticas, econômicas, sociais, históricas em que a obra foi concebida e, até mesmo, aspectos pessoais da vida do autor, bem como as limitações da obra em contextos sociais e históricos diferentes, inclusive no que diz respeito à sua aplicabilidade e veracidade ao longo do tempo. Se a ¨Itália¨ da época (pois ainda eram Estados independentes) passava por momentos peculiares, cujo contexto justificava uma liderança nos moldes de um César Bórgia, isto não pode ser projetado para qualquer outro contexto social. Daí ser a obra de Maquiavel ser uma como tantas outras, ou todas as outras, com as suas próprias limitações. Ela é indicativa de um determinado momento histórico, não podendo ser alçada a um modelo que mecanicamente se aplique a toda e qualquer outra situação social. E os ¨atributos¨ de personalidade e caráter de César Bórgia, decantados por Maquiavel, não são paradígmas para solucionar os problemas políticos atuais, como muitos admiradores incontestáveis e fanáticos apregoam, pois precisam sempre de um ídolo para justificar as suas atitudes e escolhas. Isto seria desconstituir o próprio conceito de ¨histórico¨. Se a ¨fortuna¨, como quer Maquiavel, foi a responsável pela desastroza vida de César, após a morte de seu poderoso pai, pergunta-se: porque e para quê seria indispensável e necessária uma índole tão cruel e pervertida, para determinar os desígnios de um povo e região? Assim, é questionável, sobre todos os aspectos, que a pessoa ideal para assumir o poder para a unificação da ¨Itália¨deveria ter as distorções de caráter de Bórgia. Imaginar que existe apenas uma forma e maneira de adminstrar uma região, dividida por Estados em constantes conflitos, e que unicamente César Bórgia possuia os requisitos, as ¨virtudes¨ e as qualificações essenciais para tanto diz muito da visão de mundo, da personalidade e da índole do próprio autor. Isto era uma visão particular de Maquiavel. Mas, este assunto deve ser motivo de análises e estudos de políticos, sociólogos e historiadores,. No entanto, visualizar em César Bórgia as virtudes de um grande líder político, capaz de unificar e administrar a Itália para o bem de todos seria, me parece, no mínimo, um exagero. Acredito que caberá aos cientistas políticos calibrar o verdadeiro lugar dos estudos políticos de Maquiavel, na história, ideologismos apaixonados a parte. Sobre a polêmica de que ¨os fins justificam os meios¨, embora não lhe seja diretamente atribuída, mas que é extraída, talvez ideologicamente, de seu trabalho, nada mais digna que a simples citação de Noberto Bobbio de que ¨os meios contaminam os fins¨
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